quarta-feira, 31 de março de 2010

terça-feira, 30 de março de 2010

A cor da inocência



O Laço Branco (das weisse Band) é um filme desconcertante, que mexe em alicerces ingenuamente sagrados da nossa existência e nos expõe, cruamente, as máscaras da esfera pública e privada. Diria, recorrendo a uma frase de Hitchcock que neste filme “o que não se vê pode ser tão ou mais assustador do que o que se vê.”

Olha bem...

Foto: Paulo Nozolino
“Sinto um grito dentro de mim e esse grito é abafado. Acaba por ser abafado por tudo o que está à minha volta. E a consequência é talvez um choro.”
Paulo Nozolino

sábado, 20 de março de 2010

Sobre os que ficam

Johannes Itten, Die Begegnung

Eu sou, tu és, ele é, nós somos, vós sois, eles são.


Aprendi que todos são sujeitos com diferentes conjugações e que todos fazem parte de um todo a que se chama ser.


quinta-feira, 18 de março de 2010

Fumo

Mondrian, Grey tree


pazadas de terra
ritmo
som
silêncio
fim

quarta-feira, 17 de março de 2010

H a t a m q o

Paulo Nozolino

Hoje perdi as minhas imagens de aconchego. Foi-se a esperança. Ficou a realidade.No fundo, perdi tudo. Já não sei o que faço aqui.

Descorporização

Despe o corpo
entorna a palavra
sente a alma
cheia,
transbordante,
tão vazia.

terça-feira, 16 de março de 2010

POST

Jorge Molder

O AQUÁRIO DE BOHM

Em algum sítio onde és um só
como dois gémeos divididos,
entre o nó da vida e o nó
da morte, um sonho dos sentidos;

em algum passado invivido,
em algum princípio, em algum modo
da memória ou do olvido,
em alguma estranheza, em algum sono;

ou em alguma espécie de saudade
física e inicial
de seres real,
pura exterioridade.

Manuel António Pina, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança

Scriptum

Jorge Molder

O QUE O DISCÍPULO ESCREVEU

"Se tudo é ilusão,
se escrevo a ilusão de um poema (o que quer que um poema seja),
ou a ilusão de um poema se escreve a si mesma (o que quer
que escrever seja),
através de mim (uma ausência),
se a própria consciência disso é ilusão,
se a Palavra escreve através de palavras, de verbos e de
substrantivos partilhando a mesma ilusão,
como um espelho refelctindo-se a si mesmo, uma sombra,
e se essa sombra é, por sua vez, a sombra de uma sombra de
uma sombra
da Sombra,
se o Definido, no entanto, como um espesso coração, pulsa no
indefinido e no fugidio,
ou se paradamente olha
fitando o próprio olhar,
se Homero, e Shakespeare, e Santo Agostinho,
e Buda, e Bodhidarma,
são fugazes reflexos desse olhar,
se o discípulo pergunta e o mestre não responde, ou responde
com alguma frase sem sentido (pois não há sentido),
ou se lhe bate, ou se o escorraça (pois tudo é indiferente),
Se a Indiferença é, também ela, provavelmente, indiferente,
e é indiferente que, atrás de si, permaneça, ou não permaneça,
rasto ou sombra,
se de outro modo ou do mesmo modo
algo, alguma coisa, nenhuma coisa..."

Isto foi o que o discípulo escreveu.
No entanto que mão (que mão Real) segurou a sua mão?

Manuel António Pina, Nenhuma palavra e nenhuma lembrança

sábado, 13 de março de 2010

Trajectórias



"É inútil procurar encurtar caminhos e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prémio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta, é a glória própria de minha condição. A desistência é uma revelação".


Clarisse Lispector

sexta-feira, 12 de março de 2010

Fala também tu



Fala também tu,
fala em último lugar,
diz a tua sentença.

Fala -
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua sentença igualmente o sentido:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta exista à tua volta repartida entre
a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite.

Olha em redor:
como tudo revive à tua volta! -
Pela morte! Revive!
Fala verdade quem diz sombra.

Mas agora reduz o lugar onde te encontras:
Para onde agora, oh despido de sombra, para onde?
Sobe. Tacteia no ar.
Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, subtil!
Mais subtil: um fio,
por onde a estrela quer descer:
para em baixo nadar, em baixo,
onde pode ver-se a cintilar: na ondulação
das palavras errantes.

Paul Celan, sete rosas mais tarde

quinta-feira, 11 de março de 2010

Sensibilidades

Van Gogh, Japonaiserie
Flores de cerejeira no céu escuro
E entre elas a melancolia
quase a florir
Matsuo Bashô

terça-feira, 9 de março de 2010

Percepções

John Blakemore, Ambergate
"A mesma paisagem
escuta o canto e assiste
à morte da cigarra"
Matsuo Bashô

segunda-feira, 8 de março de 2010

Escuta

Pintura: Santiago Ydáñes

Escuta
ouve a minha voz
o grito
o medo
o silêncio
porque teimas em falar?
porque não ouves?
porque te espantas?
Escuta
tudo é silêncio

domingo, 7 de março de 2010

Reconheço, logo existo?

Jerry Uelsmann

Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

Fernando Pessoa

quarta-feira, 3 de março de 2010

Fragmentos

Foto: Paulo Nozolino, Espoliados, Madrid 2003


O corpo amanheceu dorido
fragmentado
deslassado.




terça-feira, 2 de março de 2010

A palavra viva

Pollock
Muro em vez de boca, cal em vez de língua. Boca em vez de muro, língua em vez de cal. Um ímpeto, uma cor, uma mancha, uma marca escrita, um círculo de terra, uma coisa viva. Tantos astros de areia, tantos rostos de pedra! E o céu vasto, redondo, completo, os vultos vivos, ligeiros, matinais. Ritmo, crescimento, inundação. Por toda a parte o silencioso calor de um animal aéreo. O mundo acendeu-se com as suas árvores transparentes. Tudo é fácil, tudo é fluido. Suavemente vazio, na nudez intacta, o corpo escreve com a espuma do ar.
António Ramos Rosa, Clareiras