terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Paisagem de chuva

Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a monotonia liquida me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora com som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençois como entre gente, dolorosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade - áquela hora parecia que também indefinidamente.Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir.O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas pedras, crescia do fundo da rua, estralejou por debaixo da vidraça, apagava-se para o fundo da rua, para o fundo do vago sono que eu não conseguia de todo. Batia. de quando em quando, uma porta de escada. Ás vezes havia um chapinhar liquido de passos, um roçar por si mesmos de vestes molhadas. Uma ou outra vez, quando os passos eram mais, soava alto e atacavam. Depois, o silêncio volvia, com os passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente. Nas paredes escuramente visiveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente. Quanto á janela, eu só a ouvia.Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que ia sonhar. Os objectos vagos, participantes, na sombra, da minha insónia, passam a ter lugar e dor na minha desolação.

Bernado Soares

porque sonhas?

Pollock


Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente.

Bernado Soares

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Não sei o quê desgosta

Não sei o quê desgosta
A minha alma doente.
Uma dor suposta
Dói-me realmente.

Como um barco absorto
Em se naufragar
À vista do porto
E num calmo mar,

Por meu ser me afundo,
Pra longe da vista
Durmo o incerto mundo.


Fernando Pessoa

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O que há em mim é sobretudo cansaço



O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo, íssimo.
Cansaço...

Álvaro de Campos

domingo, 20 de julho de 2008

Mente sã em casa doentia!

Poderia ser uma história kafkiana a que se tem construido em minha casa. Cada vez que me aproximo e abro a porta, deparo-me com complicadíssimos labirintos que a minha lógica rasteira não consegue resolver. Entro numa divisão e vejo objectos estranhos que parecem ganhar vida e mover-se de dia para dia. Quando julgo ter acabado de resolver um enigma já outro se me apresenta. Isto não tem fim! A minha casa metamorfoseou-se e quer arrastar-me, juntamente, na confusão.
Hoje vinguei-me. Fechei a porta e fui domir a sesta. Que bem que me soube esta pequena vingança!

terça-feira, 15 de julho de 2008

Uma questão de imagem

Costumo dizer que as pessoas têm uma ideia errada de mim. Quando penso nisso questiono-me se não serei eu própria que ajudo a construir essa imagem desfocada daquilo que eu penso ser. Vamos por partes; há quem julgue que me tenho em grande conta, com manias de super-mulher, megalómana, que se julga com uma capacidade extrema de trabalho, capaz de fazer um pouco de tudo, rápida, pragmática mas que,no fundo, não é esse o meu verdadeiro eu. Há quem pense que o meu lado mais genuíno reside nas minhas fragilidades ou na minha maior fragilidade que é, no fundo, o jeito inato para me vitimizar, para dizer que a vida foi madrasta comigo, que é tudo difícil e tirado a ferros e sei lá mais que lamentos. De facto, até acho que me vitimizo, que sou amarga e que tenho uma vida demasiado pesada, pelo menos, em relação às expectativas que construí referentes à minha vida. O que eu não sei é a origem dessa vitimização que é, de facto, um traço recorrente em mim.

O que é certo é que por debaixo da máscara de fortaleza, existe um ser humano frágil, com cicatrizes, carente, com uma grande necessidade de ser aceite e amado pelo outro. Será que tudo o que faço é para agradar o outro? E o que faço eu para me agradar?

Amor e uma cabana!

Vivemos numa sociedade cada vez mais consumista e consumidora de sonhos. Entram-nos pelos olhos imagens de vidas perfeitas, passadas em casas de sonho, com relvados verdejantes, piscinas, cadeirões e recantos que fariam a delícia do nosso ego.
Exteriormente podemos sempre mobilar-nos com o que está mais "in" e próximo do que nos seduz e seduz o outro. E interiormente, o que pode o dinheiro fazer por nós? Construir a nossa identidade?



sexta-feira, 11 de julho de 2008

"Laivos de análise selvagem"



Algures no tempo foi-me feita uma pergunta que ainda rumina dentro de mim: "afinal o que queres mais da vida? O que te falta?"
Continuo a não saber a resposta. Sei, no entanto, que isso me dá cabo da existência.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Sobre o olhar!






Porque o meu blog é, acima de tudo, feito de imagens, partilho aqui algumas em que o meu olhar se tem demorado e deliciado.





domingo, 29 de junho de 2008

Momentos!


A vida
é
fugaz.



quinta-feira, 26 de junho de 2008

Untitled



Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,

Mas, quando despertei da confusão,

Vi que esta vida aqui e este universo

Não são mais claros do que os sonhos são.

Obscura luz paira onde estou converso

A esta realidade da ilusão

Se fecho os olhos, sou de novo imerso

Naquelas sombras que há na escuridão.


Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,

É a mesma mistura de entre-seres

Ou na noite, ou ao dia transferida.

Nada é real, nada em seus vãos moveres

Pertence a uma forma definida,

Rastro visto de coisa só ouvida.


Fernando Pessoa

Dead Can Dance





quarta-feira, 25 de junho de 2008

Untitled


Para quem gosta de olhar com a alma!


sexta-feira, 20 de junho de 2008

A Mabel pensa?

Hoje começei a ler um livro novo:"O livro do Riso e do Esquecimento", de M. Kundera. Logo no prefácio deparo-me com uma frase que me toca singularmente. Pois bem:

"Há coisas mais difíceis do que pensar. Viver, por exemplo (...) Porque o homem pensa e a verdade escapa-lhe. Porque quanto mais os homens pensam mais o pensamento de um se afasta do pensamento do outro."

domingo, 15 de junho de 2008

Barreiras!



Um dias destes li um poema de Antoine Tudal que me fez pensar sobre a barreira inerente à relação homem/ mulher. Por penoso que possa parecer, é uma crua verdade!


"Entre o homen e o amor, existe a mulher.

Entre o homem e a mulher, existe um mundo.

Entre o homem e o mundo, existe um muro"

sábado, 31 de maio de 2008

O olhar do outro


Porque não nos conseguimos olhar, necessitamos sempre do olhar do outro para nos podermos (re)ver. As pessoas com que nos entrelaçamos ao longo da vida, não serão aquelas que conseguiram verbalizar aquilo que achamos ser?

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Verborreias!

Há alturas na vida em que tudo desafina e se desconhece.
Neste palco , onde todos somos actores, há um ponto que nos vai ditando as falas quando a memória se nos dilui. Que tragédia!
Temos um corpo mas a memória não é nossa. Parecemos marionetas sem vida, à procura de sangue que se injecte nas veias e nos faça reerguer.
Tudo o que digo parece desprovido de sentido.
Talvez.
Às vezes, a vida também não parece fazer qualquer sentido. Faz tudo parte do nosso percurso. Até o absurdo!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Simplicidades

Às vezes pergunto-me porque nos perdemos?

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Instantes



As crianças têm um condão de fruir plenamente a realidade, sem a questionar e problematizar.

O outro dia , quando fui buscar o meu filho à escola, senti-me, por uns momentos, entrar neste mundo descomplicado quando, o seu grupo de amigos me conduziu até junto de uma descoberta maravilhosa que tinham feito na hora do recreio. Tratava-se de uma minhoca que se arrastava pela terra e que tentava encontrar, a todo o custo, um buraco para se enfiar. Entre risos e olhos curiosos, houve uma amiga do meu filho que me abraçou, pois todos estavamos de gatas a ver a minhoca, e me deu beijinhos apertados. Disse-me: "cheiras bem" e de seguida deu-me um grande abraço e mais beijinhos. Os outros, todos à minha volta, agarraram-se a mim para que eu brincasse com eles. Foi um momento de pura felicidade. Saí do colégio com um grande sorriso no rosto e pensei que há momentos únicos na vida que guardamos para sempre no livro das nossas memórias.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

O meu pompom!

O outro dia, quando brincava com o meu filho, decidimos fazer um pompom. Enquanto entrelaçava os fios numa rodela de papel, pensei como me sentia interiormente desamparada. Ao entrelaçar o fio veio-me à memória que as coisas boas da vida precisam de tempo e de imensas voltas até se atingir um resultado final.
Acabei o pompom e o gosto azedo da minha condição subiu-me à boca. Parece que cá dentro construí um espaço de aridez, de desconforto, de terra ceifada que recusa novas sementes.
Hoje, passado alguns meses, o meu pompom interior começou a desabrochar. Começo a pensar que a vida não tem de ser um desalento, um desencanto e que ainda há espaço para deixar crescer dentro de mim um campo de papoulas viçosas.

domingo, 13 de janeiro de 2008

O ideal!


A dada altura da minha vida complicada achei que o melhor para mim seria arranjar um homem simples e honesto!
Porque não um padeiro!
Pensei em todos os benefícios que teria; alguém que não pensasse muito sobre as coisas, que não gostasse de ruminar até ao tutano e, ainda por cima, com a vantagem de ter sempre pão fresco. Não seria um deleite acordar de manhã com o cheiro do pão, de pequenas délicatessen como bolos quentes, brioches e outros acepipes?
Reflectindo melhor sobre o assunto pensei até que seria o homem perfeito. Entre beijos enfarinhados e fermentados pelo calor da formalha ardente do amor iria, com certeza, querer meter a mão na massa, deixar de pensar e começar, eu própria, a construir a minha doçaria. Tudo seria perfeito, como nos contos de fadas!

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

O que não nos mata torna-nos mais fortes!


Até nos fragmentos, destroços, ruínas, devastação resta uma vida que tem uma sintonia própria. Aparentemente desmembradas, ou lascadas, há peças únicas que encaixam apenas na ranhura desenhada pelo seu autor.